O embaixador de Athaulphia em Roma visita o Magister Officiorum

O carro do embaixador athaúlphico circulava pelas transitadas ruas de Roma para a reunião. No assento traseiro o embaixador repassava seus papéis com gesto preocupado.

Federico Moa levava muitos anos em Roma e nunca tinha tido uma missão tão complicada. Tinha sido nomeado embaixador ali pelo anterior Presidente de Athaulphia, o conservador Manuel Nazario. Nazario sempre tinha sido amigo dos romanos, mantendo uma relação imelhorável com Roma. Assim, o trabalho de Moa em Roma sempre tinha sido agradável e calmo, sem complicações e mantendo boas relações com os romanos.

Quando em Athaulphia mudou o governo Moa tinha conservado seu posto: os socialistas preferiam manter em Roma a alguém com experiência em tratar com os romanos. No entanto, Moa sempre tinha temido que, com este governo, antes ou depois ia produzir-se algum choque com Roma. E esse dia tinha chegado. O carro se acercava já ao palácio onde tinha seus escritórios o Magister Officiorum romano. Até agora todas as visitas de Moa àquele local tinham sido agradáveis recepções de cortesia, mas hoje vinha tratar um tema polêmico.

Moa saudou aos guardas e ao pessoal administrativo, aos que já tinha visto várias vezes. Fez-se anunciar e esperou, dando voltas de um lado a outro com gesto nervoso.

Federico Moa seria recebido pelo jovem Ulpius Pius, que com 23 anos já era Magister Officiorum e Senador, caso raro, mas qualidades não faltavam ao rapaze. Era famosa mundialmente e nacionalmente a sua tremênda arrogância.
Faz um gesto ao seu secretário escravo, Cocles, que lhe traz as prorrogativas das queixas Athaúlphicas...[/b]

Ulpius Pius: Cocles... Faz-nos um favor traz-nos algo para beber e a papelada... Estou a morrer de sede...

Ora bem a que se deve este rídiculo? Pensa que eu sou pago e gasto meu latim para perder o meu precioso tempo com futilidades tremendas como esta? Espero que tenha um bom justificativo!

Fica muito sério a observar moa, e com cara de poucos amigos...

Com seus 59 anos, Moa não entendia por que os romanos tinham posto à frente de sua diplomacia a alguém tão jovem. Demasiado quiçá, para atuar com a prudência que requer esse trabalho. Mas Moa conhecia o alto nível das escolas romanas e esperava que Pius o demonstrasse. Ademais, trazia instruções muito claras de Athaulphópolis, assim que esperava que a reunião se resolvesse rapidamente, num sentido ou em outro.

- Saudações, Senador Pius. Como vejo, já foi posto a par do assunto do que venho falar-lhe, assim que pouparei detalhes, pois ao igual que você, penso que este tema deveria resolver-se rapidamente.

Moa se acomodou e começou com tom pausado:

- Como já saberá sua Exceléncia, a questão da escravatura é muito polêmica em meu país, e minha gente é muito sensível ao tema. Uma importante parte dos primeiros colonos de Athaulphia, faz 500 anos, eram escravos fugitivos, e isso é uma coisa que todos os athaúlphicos aprendem na escola primária. Por isso, nossos cidadãos estão muito concientizados contra a escravatura. Inclusive nossa Constituição a menciona, proibindo-a.

Não é nossa intenção promover a abolição da escravatura em Roma, nem inmiscuirnos em sua legislação... mas a presença de escravos em suas legações diplomáticas em Athaulphia incomoda profundamente a meu Governo, e de fazer-se pública geraria um forte escândalo. Felizmente, este assunto não transcendeu à opinião pública, o que nos permite dar-lhe uma solução satisfatória para todas as partes.

Moa adiantou-se um pouco na poltrona baixou o tom de voz, procurando certa cumplicidade:

- Não queremos que isto se converta num pulso entre os dois governos para ver quem ganha e quem cede, e por isso nos comprometemos a que, se vocês cumprem com sua parte, manteremos este assunto em segredo e negaremos publicamente e ante qualquer outro governo que tenha tido lugar. Assim ninguém poderá dizer que Roma teve que ceder, e tudo o que vocês fizessem seria um ato voluntário, e em todo caso um gesto de boa vontade.

Para isso, rogamos-lhes que retirem os escravos presentes na legação ante a Sociedade das Nações, e qualquer outro que tenham em suas embaixadas em Athaulphia. Ou, se seus proprietários o preferem, dêem-lhes a manumisión. Convençam aos proprietários, ou pressionem-nos, como melhor prefiram, mas façam-no. A cámbio, Athaulphia manterá uma discrição absoluta sobre tudo o incidente, e terá em conta este gesto no futuro.

Moa recostou-se um pouco para atrás, relaxando-se. E com o tom mais amistoso que tinha em sua voz concluiu:

- Athaulphia e Roma levam muitos anos de amizade, desde os tempos do ex-Presidente Nazario, e as boas relações se mantiveram inclusive com as mudanças de governo. Seria lamentável que essa boa relação se estragasse por um detalhe que, ainda que para vocês seja menor e insignificante, significa muito para nós. A vocês não lhes custa nada, e confiamos na milenar sabedoria de Roma para dar-lhe solução.

Ulpius Pius: Também á 2800 anos atrás Roma era uma cidade de agricultores e não possuia escravos... Mas as coisas evoluem, e como sabe essa mão-de-obra em Roma é tão preciosa quanto ouro e diamantes. Obviamente desperdiçar escravos nos campos é coisa estapafúrdia quando há máquinas avançadas que fazem o trabalho de 1000 ou mais, não compensa. Agora possuir um servente pessoal é algo que se perde na imensidão histórica do Império... O senhor formata o seu servente conforme as suas necessidades, dá-lhe estudos, e condições dignas... Creio que muitos de vossos pobres dariam tudo para serem serventes de uma pessoa de alto nível como Julianus!
Agora como é que Tiro surgiu como escravo? Sei lá, eles aparecem-nos aqui das maneiras mais hilariantes, e desta cambada de selvagens fazemos gentes dignas de se tornarem futuros cidadãos romanos...

Veja Cocles... Se o meu pai não mo desse como prenda de anos, o que seria deste homem? Andaria perdido na terra, talvez a competir com um cão por uma refeição de lixo, aqui tem tudo que quer e lhe apetece... Já dizia Aristóteles que o amo nunca deve maltratar o escravo, porque este faz parte de si, é como uma parte do corpo! Concerteza voçê não se corta no seu braço direito por puro prazer!

Cocles apresenta-se muito limpo, muito bem penteado, barba feita, sapatos muito engraixadinhos e com uma camisa e suspensórios. Ao seu pescoço uma tabuleta em bronze indicando que é escravo de Ulpius Pius, isto dá-lhe uma certa imunidade. A gravata em Roma era só permitida aos cidadãos romanos, os escravos não a usavam, assim como os estrangeiros residentes em Roma era-lhes vetado o uso. A gravata vem substituir a Toga neste caso.

Por isso meu caro, não nos deia lições de humanismo, de vós isso não posso dizer*, mas enquanto o resto do mundo perdia horas em rituais macabros e primitivos, já os Filósofos enchiam os monumentais pórticos do Forum Romano...

Ulpius estava a ser brando com Moa, esperava que este entendesse que o Estado Romano não podia agir contra a propriedade privada de um cidadão, ainda por cima da Ordem Senatorial.

*alusão á origem romana dos athaulphicos

Moa suspirou silenciosamente.

- Senhor, entendo perfeitamente a tradição da instituição da escravatura em Roma e as condições dos escravos, mas neste assunto as condições… digamos materiais de seus escravos são por desgraça irrelevantes. É uma questão de direitos defendidos por nossas leis, e ainda que sabemos que não lhes podemos obrigar a cumprí-las, esperamos que, por cortesia, façam o esforço de moldar-se.

Moa olhou dissimuladamente a tabela de bronze de Cocles, e continuou:

- Os diplomatas athaúlphicos em outros países costumamos levar gravata; mas eu, como pode ver, não a uso, porque me considero obrigado a respeitar a norma romana segundo a qual só os cidadãos romanos a podem levar. Bem poderia invocar minha imunidade diplomática e meu direito a vestir-me como quisesse para levá-la, contravindo sua lei, mas isso seria uma provocação absurda, e consideramos que devemos adaptar-nos a seus costumes em tudo o possível. Por isso proibimos o uso de gravata a nosso pessoal: se um diplomata athaúlphico destinado a Roma se empenhasse em pôr-se gravata lhe pediríamos que desistisse de sua atitude para não molestar a nossos anfitriões, e se persistisse, nos obrigaria a relevar-lhe de seu posto.

Este é um caso similar, ainda que a escravatura não é uma questão de vestimenta, senão algo que afeta à dignidade humana, e por isso cremos que deveriam tomar nossas objeções em consideração. Estou seguro, e não ponho em dúvida de nenhum modo, que seus assistentes pessoais estão altamente satisfeitos com sua situação e seu trabalho. Por isso penso que o assistente do Legatus Julianus seguiria prestando seu serviço a seu amo com a mesma eficácia e diligência ainda que mudasse seu status jurídico de escravo a empregado livre.

Sei que lhes estamos pedindo algo que não tem fácil encaixe jurídico e que vocês não podem atuar contra a propriedade privada de um cidadão. Mas também sei que um homem como Julianus, em sua alta responsabilidade e sendo membro de tão elevado ordem, é antes de mais nada um patriota e um fiel servidor do Império, e que se vocês lhe expõem com clareza a importância que este assunto, ele compreenderá e saberá fazer esse pequeno sacrifício pelo Império. E nós lhe daremos todas as facilidades por nossa parte com nossa absoluta discrição.

Federico Moa se sentiu mais calmo: “este é um jovem muito válido”, pensou, “sabia que as escolas romanas não podiam falhar”:

- O senhor tem razão, e lhe agradeço seu entendimento e sua boa vontade. No entanto, no caso concreto do senhor Julianus há um problema adicionado: soubemos por fontes reservadas que outros governos, representados na Sociedade das Nações, descobriram o assunto dos escravos de Julianus. Se não resolvemos esse problema de maneira discreta, tal como lhe propomos, será proposto publicamente ante a Sociedade das Nações, o que pode agravar o incidente.

Uma maioria muito ampla da Sociedade das Nações condena a escravatura, e se esse assunto fora levado a um debate público internacional, o Império Romano se encontraria em frente da maioria do mundo: cremos que, se se propõe ante a Sociedade das Nações uma resolução sobre organização interna, que proibisse a tenência de escravos nas legações, teria muitíssimas probabilidades de prosperar.

Moa baixou o tom e se acercou a Pius de novo:

- Pense, Senador Pius, que os inimigos de Roma não desaproveitarão uma oportunidade como essa para danar a imagem de seu Império e obter uma pequena “vitória”, ainda que seja só diplomática e moral, sobre vocês. Nós pensamos que a situação internacional já é bastante tensa e que devemos evitar qualquer desculpa que possa servir para gerar novas tensões.

Por isso desejamos solucionar este problema antes de que se faça público, e por isso estamos utilizando ao máximo todos nossos recursos diplomáticos para evitar o escândalo. Pense que poderíamos ter ido diretamente à Sociedade das Nações... e haveria governos estrangeiros que agora estariam desfrutando. Muitos desejariam dar-lhe uma bofetada a Roma na cara do Legatus Julianus, e por isso lhes pedimos que considerem a situação e não lhes dêem essa oportunidade. É algo benéfico para Roma e benéfico para Athaulphia.

O embaixador athaúlphico sorriu ao ouvir o nome de Cassandra Lewis: a personagem já tinha fama mundial e suas brigas constantes com os romanos já eram célebres. Moa fez um gesto de cumplicidade a Pius:

- Vejo que ao senhor não se lhe pode ocultar nada, hehe… mas oficialmente eu não mencionei a ninguém.

Moa se relaxou: as coisas não tinham saído tão mau como esperava, e aquele jovem, ainda que impetuoso, sabia o que fazia.

- Lhe agradeço profundamente seus atendimentos e que me faça o favor de falar com o senhor Julianus e propor-lhe a situação, Senador Pius. Quanto a Tiro, não nos surpreenderia que seguisse trabalhando como assistente de Julianus ainda que fora manumitido: conhecemos sua boa relação com Julianus e o bom trato que Julianus lhe dispensa… de fato nos surpreenderia mais do que não seguisse com ele. Se tal coisa sucedesse, por suposto, consideraremos que sucedeu por pura vontade e conveniência do senhor Julianus e que nós não tivemos que ver.

Considerando que o assunto que tinha vindo tratar já estava resolvido, Moa tratou de relaxar o ambiente:

- E bem, Senador Pius: ainda não veio você a jantar a minha embaixada, e nos faria uma grande honra…

OOC: então, como termina a história? Julianus dá a manumisión a Tiro, ainda que siga como seu empregado, para evitar que a Cassandra meta os narizes?

OOC: Já esta liberto, e já é cidadão romano...

Cassandra Lewis, ora bem, metendo o bedelho neste assunto começa a arriscar-se a uns sustos

- Muito bem, espero que quando o senhor se encontre menos atarefado nos honre com sua visita. Só tem que chamar, o dia que prefira.

E considerando que a reunião estava concluída, preparou-se para despedir-se:

- Lhe agradeço imenso seu tempo, pois sei que é especialmente valioso num posto com a responsabilidade que você tem, e lhe peço desculpas se talvez abusei um pouco dele. Athaulphia se sente muito honrada com a consideração do poderoso Império Romano, e esperamos que nossas boas relações durem por muitos anos.

- Que os Deuses o acompanhem, Senador.

Moa se despediu, e regressou à embaixada depois de saudar aos guardas ao sair. Os guardas lhe tinham visto entrar com ar preocupado e agora viam a um homem muito sorridente .

---

---

Mal umas horas depois, a Conselheira de Estado Helena Loureiro terminava de ler, em seu escritório de Athaulphópolis, o relatório enviado pelo embaixador em Roma, Federico Moa.

- Pah, este Moa é realmente bom. Pensava que só era um velho facho que estava ali por ser amigo de Nazario, mas demonstrou que sabe fazer muito bem seu trabalho - lhe disse a seu secretário

- Um grande profissional, sem dúvida - responde o secretário - Eu pensava que era impossível raciocinar com os romanos, mas estou gratamente surpreso.

- Já sabe que os tópicos estão para rompê-los - contesta a Conselheira - Em todo caso isto foi "outro grande sucesso da prestigiosa diplomacia athaúlphica" - comentou com tom irônico

- Sim, mas já sabe que não podemos presumir disso publicamente - assinalou o secretário

- Sim, é verdade - recordou a Conselheira - A metade ou mais de nosso trabalho temos que a fazer assim, em silêncio . Mas "bem está o que bem acaba", como costumamos dizer.